domingo, 24 de junho de 2018

Introdução à Filosofia da História

Alguns dizem que a história de um povo ou nação tem um movimento pendular; outros dizem que ela se move numa espiral, ora ascendente ora descendente (confesso que eu prefiro esta segunda alegoria). Qualquer que seja o movimento dessa História, acontecimentos e ideias que estiveram encarnadas em pessoas e episódios que fizeram sofrer ou sorrir indivíduos e/ou coletivos costumam retornar como espectros desejando reencarnar.

“É sabido que a História é vital para a formação da cidadania porque nos mostra que para compreender o que está acontecendo no presente é preciso entender quais foram os caminhos percorridos pela sociedade (...); senão fica parecendo que o mundo começou a girar quando tomamos consciência das nossas vidas”. – Boris Fausto – Memórias de um historiador de domingo.

O termo História:
O estudo das ciências humanas é sempre muito delicado. Isso porque o conhecimento compilado por essas áreas de investigação humana não é exato ou exatificado, sempre requerendo muita cautela de análise e produzindo um gigantesco número de abordagens que, muitas vezes, diferem.
Com relação à História, essa cautela deve sempre ser redobrada, isso porque o objeto de estudo da Historiografia é o passado, que, por definição, não pode ser reproduzido.
Nós achamos que sabemos o que aconteceu em alguns acontecimentos do passado porque temos algumas boas evidências para o que aconteceu, mas em outros casos nós apenas conjecturamos e, em alguns casos, nós apenas podemos jogar as mãos para o alto, nos entregar e desistir.
É relativamente certo que Bill Clinton venceu a eleição presidencial americana em 1996. Poderá ser de alguma forma menos claro quem venceu a eleição seguinte (risos). Acreditamos que Shakespeare escreveu suas peças, mas existe um considerável debate sobre isto. Por quê? Isto foi há centenas de anos atrás e estudiosos surgem com opiniões alternativas.
É tido como provável que César tenha atravessado o rio Rubicão, mas nós não temos muitas testemunhas oculares deste fato. Historiadores tentam estabelecer níveis de probabilidade sobre o que aconteceu no passado. Algumas coisas são bastante certas, algumas prováveis, outras possíveis, algumas são "talvez" e outras não são prováveis.
Isso significa que estudar a História é uma maneira de adquirir consciência sobre a trajetória humana. Essa consciência nos permite refletir sobre o que fomos, o que somos e o que pretendemos ser. No entanto, devemos estar atentos para os limites ou problemas da interpretação histórica.
Uma questão fundamental é que a Historiografia – isto é, a escrita da história – não pode ser isolada de sua época. Acreditamos que ao interpretar e escrever sua história, o historiador também vive seu tempo e seu contexto histórico. Por isso, a história que se escreve está ligada à história que os historiadores vivenciam, isto é, a seus problemas e alegrias, lutas e sonhos, valores, visões e expectativas.

Assim, o trabalho que o historiador elabora depende de uma série de concepções que ele desenvolve. Concepções que impactam suas escolhas e “recortes”, desde a definição do objeto enfocado (tema, método, projeto da pesquisa e tendenciosidade – intencional ou não) até a seleção de fontes históricas a serem utilizadas.
Em consequência, as conclusões a que chegam os historiadores nunca podem ser consideradas absolutas e definitivas. O historiador trabalha para seu tempo, e não para a eternidade – Eduardo D’Oliveira – A Teoria Geral da História. In: Revista de História. São Paulo, USP, n. 7, 1951. p. 134.

Por isso, a historiografia não deve ter a pretensão de fixar verdades absolutas, prontas e acabadas. Isto porque a História, como forma de conhecimento é uma atividade contínua de pesquisa. Em sua etimologia, História deriva de historein que, em grego antigo significa procurar saber, informar-se. "História significa, pois, procurar" – Jacques Le Goff – História e Memória.

Fontes históricas:
Para decifrar o seu objeto de estudo, o passado, os historiadores recorrem às chamadas fontes históricas, que são vestígios que permitem apreender informações e indícios sobre ideias e realizações humanas no decorrer do tempo.

As fontes históricas podem ser classificadas de várias maneiras: recentes ou antigas, privadas ou públicas etc. outro critério bastante utilizado consiste em classificar essas fontes em escritas ou não escritas:
- Fontes escritas – registros em forma de inscrições, cartas, letras de canções, livros, jornais, revistas, documentos públicos ou particulares, entre outros.
- Fontes não escritas – registros de atividade humana, como vestimentas, armas, utensílios, pinturas, esculturas, construções, músicas, filmes, fotografias etc.
Essas fontes históricas são analisadas à luz de um crivo metodológico que permite hierarquizar as diferentes proposições explicativas para manter o mínimo de comunhão entre o que realmente aconteceu no passado e as possibilidades elencadas através de uma relação íntima com a probabilidade, de forma a haver compatibilidade lógica. Isso porque a História é uma ciência com potencial de ser instrumentalizada de acordo com interesses. Ao pegarmos um relato oral de um sertanejo sem contato com uma educação formal, por exemplo, percebemos que a forma como ele relatará uma confusão que ocorreu ontem em sua rua será diferente do relato mais formal do policial que foi atender a diligência. Logo, é tarefa do historiador peneirar os múltiplos relatos obtidos a fim de separar os relatos enganosos ou enganados, os relatos inexistentes (que foram criados posteriormente para determinado fim), as percepções alucinógenas, etc.
Vamos fazer um exercício mental:
Você e eu estamos olhando pra minha geladeira fechada, neste exato momento, nós não sabemos o que minha mãe pôs lá dentro e, vamos supor, que uma das proposições abaixo é verdadeira, as demais, falsas:

1 - Qual a probabilidade de que haja Elysia Chlorotica, uma alga que só existe nas costas da Indonésia?
2 - Qual a probabilidade de que tenha feijão dentro de um pote de sorvete esperando para ser requentado?
3 - De que tenha danone?
4 - Qual a probabilidade de que haja uma fada com 5 pernas lá dentro?
5 - Outros

Todas essas são possibilidades filosóficas – mesmo a mirabolante alternativa da fada. (isso mesmo, você não leu errado, fadas não são impossíveis filosoficamente falando).
Agora analisando do mais provável, pro menos provável, acredito que a coisa ficaria assim:

2, 3, 1, 4 (vou desconsiderar a colocação do 5 para não me alongar).
Ou seja, para a minha infelicidade, é mais provável que haja feijão na geladeira porque frequentemente há feijão lá. É um pouco raro que se compre Danone lá em casa, mas não tão raro assim. Digamos que umas 10 vezes por ano. Então, essa alternativa 3 fica com a segunda colocação. Sobre a Elysia Chlorotica, a alga da Indonésia. Eu não diria que é muito impossível que esse vegetal viesse parar na minha geladeira. Porque minha geladeira comprovadamente existe, a alga também e a Indonésia também. É uma possibilidade muito remota mas, não é impossível.
Agora, qual a possibilidade de haver uma fada de 5 pernas na minha geladeira? Eu não vou dizer que é impossível, nem quero me alongar numa análise da possibilidade ou impossibilidade filosófica dessa alternativa, mas, apenas mostrar que, ante as demais possibilidades, alternativas miraculosas ou supra-humanas como esta ficariam atrás... muito atrás.

Eventos sobre-humanos não são impossíveis. Fugiríamos do assunto, caso entrássemos no campo filosófico para afirmar que tais eventos são impossíveis. No entanto, fato é que eles são altamente improváveis, tão improváveis que eles são as possibilidades mais remotas em qualquer situação, especialmente em análises históricas, pois eles violam a maneira como a natureza normalmente trabalha.

Eles são tão altamente improváveis, sua probabilidade é tão infinitesimamente remota, que nós os chamamos “milagres”.

“Por exemplo, ninguém neste planeta pode andar sobre as águas. Quais são as chances de um de nós conseguir fazer isso? Nenhum de nós pode, então vamos dizer que as chances são de um em dez bilhões.
Bem, suponhamos que alguém pode. Uma pequena chance de um em dez bilhões, mas, na verdade, nenhum de nós pode. Então, 1 em 10 bilhões, na verdade, não está nem perto de ser algo dessa natureza ter ocorrido”. – Bart Ehrman

E aqui entra o casamento da História com a cosmologia. A História jamais vai reconhecer um milagre, um evento mirabolante ou sobrenatural como explicação plausível para esboçar seu objeto de estudo – o passado. Simplesmente porque, em qualquer cenário, um evento sobre-humano é a alternativa mais remota que um indivíduo possa elencar. 

Pela natureza do cânone histórico, não há a menor possibilidade de reivindicar historicamente que “um milagre provavelmente aconteceu”, por exemplo. Numa análise em que observamos um espaço amostral. Milagres seriam, sem dúvidas, a alternativa mais remota a que lançaríamos mão, porque eles são tão raros, a probabilidade de que ocorram é tão infinitésima, que nós, os chamamos.... milagres! Assim sendo, milagres provavelmente não aconteceram. E a História pode estabelecer apenas o que provavelmente ocorreu... Não podemos estabelecer como provável o evento mais improvável dentre todas as ocorrências.

Assim, ainda sobre o conteúdo da geladeira, é importante lembrar que embora você dê um “chute” e diga que, nela, provavelmente há feijão, você não pode ter certeza absoluta de que minha mãe comprou o feijão no Supermercado ou que ela o plantou - ela mesma - ou ainda roubou de uma vizinha. Com as informações que você tem disponíveis o máximo que você pode dizer é: essa hipótese aqui é absurda, é incoerente, não faz sentido, ou, pelo menos, não faz tanto sentido quanto aquela outra.

E mesmo que você analise e chegue à conclusão de que a hipótese mais provável é a de que "minha mãe comprou o feijão", ótimo! Mas, isso não quer dizer que você vá conseguir explicar toooooodos os mínimos detalhes de como isso sucedeu.

Você vai ser totalmente incapaz de dizer em qual Super ela comprou, você não vai saber dizer se ela comprou no cartão, ou à vista, você não vai saber dizer qual tipo ela escolheu, você não vai saber dizer se ela já deixou cozido ou pré-pronto, enfim, você não tem recursos pra explicar nos mínimos detalhes como aquele feijão foi parar ali. Esse tipo de questionamento é frequente como forma de confrontar os estudiosos de História. Porque frequentemente nos deparamos com proposições que são consideradas ou mais ou menos prováveis, não só eventos que tangenciam a sobrenaturalidade, mas, também, qualquer evento que ocorra e que você não tenha recursos para determinar o porquê ou como aconteceu. Porque quando um leigo em História te conta uma estória estapafúrdia que você não viu, você não tem como analisar, como investigar e a pessoa não possui nem uma foto ou um vídeo, ela está só relatando oralmente (muitas vezes a própria pessoa nem viu pessoalmente e só tá contando o que ouviu alguém falar) se você não souber explicar nos mínimos detalhes como aquele cenário histórico se desenrolou, as pessoas já cantam vitória como se isso fosse evidência de que a proposição que ela elegeu tendenciosamente como a mais provável, é a verdade absoluta. Esse tipo de performance intelectual é profundamente desacreditada pela História porque não há essa ligação de causalidade exposta de forma maniqueísta e superficial. Não é um conceito difícil de entender, pois será que isso (o fato de eu não ser capaz de explicar tudo nos mínimos detalhes sobre o feijão) quer dizer que a hipótese de que "há feijão na geladeira" tem o mesmo valor de "há uma fada com 5 pernas na geladeira"?

“O historiador não é um escravo humilde nem um senhor tirânico de seus fatos. A relação entre historiador e seus fatos é de igualdade e reciprocidade (...)
O historiador começa com uma seleção provisória de fatos e uma interpretação, também provisória, a partir da qual a seleção foi feita – tanto pelos outros quanto por ele mesmo. Enquanto trabalha, tanto a interpretação e a seleção quanto a ordenação de fatos passam por mudanças sutis e talvez parcialmente inconscientes, através da ação recíproca de uma ou de outra. Essa ação mútua também envolve a reciprocidade entre presente e passado, uma vez que o historiador faz parte do presente e os fatos pertencem ao passado. O historiador sem os seus fatos não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem significado. Portanto, minha primeira resposta à pergunta ‘Que é História?’ é que ela se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado.” – Edward Hallet Carr – Que é História?

“A História é uma ciência humana. Isso quer dizer que ela tem uma certa relatividade dependendo muito da visão do historiador. A História tem uma lógica, tem normas, tem um processo, portanto, tem uma objetividade (...). O historiador se vale de uma série de fontes que incluem desde documentos oficiais, até notícias na imprensa ou mesmo coisas aparentemente inesperadas como o rótulo de um remédio. Tudo depende do tipo e do tema de sua pesquisa.” – Boris Fausto, 2002.


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