Breve Análise da Conjuntura Social da Irlanda Medieval:
Dentre as sociedades medievais, a Irlanda Céltica foi peculiar no quesito liberdade em vários aspectos, sendo citada por autores liberais extremistas - Rothbard e Joseph Peden - como exemplos de sociedades anarcocapitalistas. Vamos analisar a sociedade e a veracidade histórica de tais interpretações:
A Irlanda Medieval (Þjóðveldið) é o nome que damos a uma conjunção com uma relação política de proximidade (embora não exatamente de conexão) num sistema de vassalagem entre 109 tuaths, com cerca de 1 milhão de habitantes ao todo. Eram os tuaths sub-reinados com anormal independência (se compararmos ao padrão-europeu), com relação ao poder da monarquia central, geralmente diminuta ou inexistente. Os tuath, por sua vez, possuíam unidades políticas locais fortes - os clãs, os septos e fines, que por sua vez possuíam grande poder e não-raramente independência, sendo comparados por Patrick Joyce em A Social History of Ancient Ireland com tuaths menores.
Além de cada tuath ter seu rei, cada clã ou septo tinha seu nobre, chamado flaith. Para se tornar um rei ou um flaith o requisito mínimo era ser parte de uma família nobre específica, e a população poderia escolher, por eleição, qual indivíduo desse grupo específico de pessoas seria rei ou flaith (as funções e direitos desses governantes serão explicados adiante). Assim, os tuaths eram uma unidade jurisdicional do território da Irlanda.
Rothbard interpreta - num equívoco histórico - que o tuath era uma associação voluntária de indivíduos, da qual eles podiam optar por seceder e cuja vinculação requeria anuência dos indivíduos. "Cada um dos membros estava livre, e frequentemente o fazia, para abandonar um tuath e se juntar a um tuath concorrente. Muitas vezes, dois ou mais tuatha decidiam se fundir numa unidade única, mais eficiente."
Rothbard não compreendeu que primeiro os tuaths não eram exatamente baseados em parentesco, pois podiam mesclar estrangeiros. A fusão de tuahts ocorria pelo mesmo motivo que a URSS uniu-se com outros países do leste europeu, condensando maior capital e constrangimento político, tendência quase que natural de Estados. A "secessão" de um tuath para outro possibilitava apenas a migração de um tuath para outro tuath e não um fracionamento que segmentasse o poder das potestades locais, muito menos a nível individual. De novo, assim como atualmente ocorre, cidadãos podem imigrar e morar onde queiram, desde que o destino aceite recebê-los e eles possuam recursos para o deslocamento. O dr. Patrick Joyce exibe a natureza involuntária e não-libertária dos tuath quando aborda o vínculo que subjugava as descendências ao jugo dos micro-governantes/coroneis locais, típico no universo feudal europeu. “A tribo (ou agregado de tribos), sob um governante, rei ou chefe, se estabelecia permanentemente em um distrito ou país definitivo.”, diz ele.
Outro aspecto importante era a relativização do direito absoluto à propriedade privada, esta sendo inexistente nos tuaths. “Havia alguma propriedade da terra, e isso é claramente reconhecido na Brehon Law. Mas a ideia original de propriedade coletiva nunca foi exatamente perdida: já que, embora as pessoas possuíssem terra, a propriedade nunca era absoluta. Um homem, por exemplo, não podia alienar sua terra para fora da tribo. E ele tinha que se submeter a certas outras obrigações tribais na administração e disposição de sua terra, todas as quais eram vestígios da antiga propriedade coletiva da tribo.” (A Social History of Ancient Ireland).
Sir Henry Maine em Lectures on the Early History of Institutions transcreve um dos mais importantes tratados jurídicos da Antiga Irlanda, chamado Ancient Laws and Institutes of Ireland e nele é dito: "cada homem da tribo é capaz de manter sua terra da tribo; ele não pode vendê-la ou aliená-la ou escondê-la, ou dá-la para pagar por crimes ou contratos".
Por ser proprietário num tuath, o indivíduo era também constrangido a defender a propriedade comum... do próprio tuath. Ou seja, quem vivia no tuath devia obrigações ao governante e ao seu "micro-país", nada diferente do que ocorria em muitas outras regiões europeias que eram fracionadas em uma comunhão de feudos que só mais tarde seriam fundidos nos Estados Nacionais que conhecemos.
Em The Ceiles and Land Laws, Laurence Ginnell descreve como a ingerência da comunidade-local na propriedade privada incidia, inclusive, sobre bens móveis, como gado. A livre associação e livre comércio também não eram imunes à regulação: “a adoção de estrangeiros na família (...) requeria o consentimento do finé ou círculo de relações próximas – formalmente dado em uma corte ou reunião; e as pessoas adotadas não tinham direito total como os cidadãos ordinários, especialmente quanto à terra.” A morte do arrendatário das terras não prenunciava a transmissão via herança de sua propriedade para sua descendência ou para quem o proprietário tivesse intenção de transmitir, mas para o fine ou septo.
Ao contrário do que diz Joseph Peden, o tuath não era simplesmente a soma das propriedades de terras de seus membros, mas a esse bojo acrescentam-se terras consideradas públicas e terrras de uso comum, sobre as quais não incidia qualquer arrendamento: “O chefe, seja na tribo ou no septo, tinha uma porção de terra mensal, para a vida e enquanto ele permanecia chefe.”
Sobre os impostos, eles não eram inexistentes, tampouco. "Cada pessoa da tribo devia pagar ao chefe certos subsídios de acordo com seus recursos", diz Patrick Joyce. Esses impostos eram pagos aos flaiths, que podia "confiscar seu gado ou qualquer outro bem para que seu valor fosse pago." Esses impostos pagos aos flaiths eram revertidos às funções de justiça, ao fornecimento de bens públicos, como canais e estradas, usados pelos próprios faiths, transferidos ao rei ou chefe superior, prover suprimento de guerra, auxiliar quando ocorressem catástrofes, criar meios de produção e auxiliar a economia local, etc. Em The Brehon Laws: A Legal Handbook, Laurence Ginnell diz o seguinte:
“O sistema irlandês provia o flaith com a coleção dos tributos, mas deixava-os quando coletados nas mãos do coletor. O flaith era ao mesmo tempo um recebedor do estado e um executivo chefe de seu distrito. O que ele fazia com todos esses tributos em espécie que lhe eram continuamente concedidos? O sistema teoricamente provia muitas coisas úteis para ele fazer… Ele era obrigado a pagar alguns tributos ao rei ou chefe superior. Em tempo de guerra, ele estava limitado a prover um número fixo de homens e cavalos, bem como comida, para eles. Ele devia entreter os reis e seus oficiais elevados em suas visitas periódicas. Ele devia realizar provisões adequadas aos oficiais públicos de seu pequeno território. Ele devia, com a participação de assembleias locais, manter estradas, canais e balsas e repará-las e fazer novas quando necessário; ele devia prover proteção contra furacões e inundações; manter os moinhos públicos do distrito, a rede de pesca pública, e outras instituições públicas que variavam com a natureza do distrito… Essas eram funções úteis, e de forma alguma elas eram as únicas funções que o flaith, por lei, devia realizar, e provavelmente realizava (através de servidores, claro), desde que as assembleias locais exercessem poderes de direção e controle.” Havia, inclusive, um sistema previdenciário rudimentar cuja obrigatoriedade de contribuição não era discricionária, mas sim vinculativa, já que todos no tuath tinham a obrigação de “contribuir para a manutenção das pessoas velhas sem filhos da tribo.”
Sobre esses tributos que ascendiam pros reis superiores, a Brehon Law (IV, 51) - base jurídica do sistema irlandês: “Quem não tem reféns para si não é um rei.”, isso porque as autoridades superiores usavam como instrumento de obediência e garantia de que as inferiores até os flaiths repassariam os recursos através da tomada como refém de pessoas valiosas e filhos, que por sua vez aplicavam repressão sobre os proprietários individuais para coletar esses impostos. Até porque se fossem totalmente voluntários, não seriam impostos.
Embora seja consenso que no sistema predominava o poder local, não o geral, essa realidade não era tão rígida, Donnchadh Ó Corráin, por exemplo, em Nationality and Kingship in Pre-Norman Ireland dá exemplos concretos de taxação direta do rei geral da Irlanda sobre os feudinhos locais em certos períodos, como ocorreu - ex - com o rei Máel Sechnaill mac Domnaill que, em 1007, cobrou uma grande quantidade de impostos em uma região para construir um altar.
Sobre Política e Justiça, Rothbard cita a Irlanda Medieval como exemplo factual de uma sociedade que subsistiu por séculos e que rechaça a tese alastrada do apóstolo São Paulo (e outros posteriores) pelo Ocidente Cristão, de que a autoridade política garante a ordem e a paz social, sem a qual uma sociedade minimamente complexa e civilizada é impossível. Para ele, a sociedade irlandesa possuía uma justiça desprovida da participação do Estado e de autoridades políticas como reis, nobres, etc. Portanto, esse exemplo mostraria como a justiça aplicada e mantida pelo Estado é desnecessária. Certo.... não é a intenção da página realizar juízo de mérito sobre sua ideologia, mas o uso do exemplo histórico irlandês não cabe.
Primeiro sobre as peculiaridades: o ordenamento jurídico da Irlanda Medieval era tocado por juízes especializados com bom conhecimento e experiência da lei. Eram conhecidos como Brehons. Isso porque a Brehon Law era extremamente complexa e regulava minuciosamente vários aspectos da sociedade irlandesa. Eram predominantemente os brehons que julgavam. Rothbard diz, porém, que apenas eles julgavam, sem auxílio de reis ou autoridades políticas, e, também, que a aplicação da justiça não tinha qualquer relação com reis, nobres, ou autoridades públicas.
Diz Rothbard:
“Os brehons não eram de maneira alguma funcionários públicos ou governamentais; eram simplesmente escolhidos pelas partes envolvidas em disputas com base em sua reputação por sabedoria, conhecimento das leis consuetudinárias e pela integridade de suas decisões.
Além do mais, os brehons não tinham qualquer ligação com um tuatha específica ou com seus reis. Eram completamente privados, seu escopo era nacional, e eram utilizados para resolver disputas em toda a Irlanda. Ademais, e este é um ponto crucial, ao contrário do sistema de advogados privados da Roma Antiga, o brehon era tudo o que havia disponível; não existiam outros juízes, nem juízes ‘públicos’ de qualquer tipo, na Irlanda antiga.” - Murray Rothbard - O Manifesto Libertário
A tese de Rothbard, portanto, é a de que não havia nenhuma participação de reis e nobres na justiça, e os brehons eram como que meros árbitros voluntários ou que prestavam serviços, escolhidos voluntariamente pelos particulares. Verifiquemos:
Merrilyn Gerriets em The King as Judge in Early Ireland é taxativa quando prenuncia que em cada tuath da Irlanda Medieval havia um rei e vários nobres locais, sendo esses nobres algo como “reis inferiores” em sua área específica dentro do tuath, com direitos específicos como os de cobrar tributos e de defender a região contra inimigos externos. Se alguma fonte não diz que o rei costumava julgar, isso não significa que nobres e funcionários públicos locais também não julgavam.
O rei, tendo força superior e sendo o responsável pela pacificação, tinha uma espécie de autoridade-última (ultima ratio) de julgamento para evitar caos e conflitos intermináveis; mas ele não costumava julgar e intervir em contendas ordinárias, apenas nas mais importantes que ameaçavam a paz do reino. Provavelmente, o próprio rei só aparecia quando os nobres não conseguissem resolver os conflitos nas localidades. Após mostrar algumas passagens das leis da antiga Irlanda, Gerriets diz: “Essas passagens indicam que uma das partes disputantes pode recorrer a uma decisão dada por um juiz dentro de dez dias; a objeção é feita na casa de um lorde das partes disputantes, e o caso é então levado ao rei… Embora esses textos deem uma evidência clara de que o rei julgava, eles não são as únicas fontes de tais evidências. (...) O flaith, senhor ou governante, não só é mostrado como responsável por julgar, mas a base de seu julgamento é a mais ampla gama de princípios legais. (...) As passagens que indicam que os flaith davam julgamentos podem ter permitido, dos nobres de status inferior até os reis, agirem como juízes, como o rei fazia."
Ela também mostra um documento da antiga Irlanda que diz que, de suas atividades semanais, o rei deveria julgar na segunda-feira. Além disso, casos de assassinato iam diretamente para o julgamento do rei, embora não necessariamente as contendas ordinárias. Ela diz: “Embora os casos de assassinato fossem encaminhados diretamente para o rei, aparentemente outros casos só o alcançaram depois que uma audiência anterior falhasse em determinar um julgamento.”
Então, se o brehon era tão respeitado e a justiça tão intrincada para pessoas comuns compreenderem, como o rei ou o nobre julgava? Geralmente, os reis ou nobres tinham brehons próprios. Inclusive, no começo da Irlanda pela Inglaterra, os nobres ingleses mantinham brehons para si “tal como os chefes nativos irlandeses os mantinham”. A esse respeito, M. J. Gorman é taxativo em The Ancient Brehon Laws of Ireland: “O Ard Righ [rei superior] anexava à sua corte um conselho de chefes Brehons ou juízes, que resolviam todos os assuntos dentro da província central, e decidiam sobre as obrigações dos quatro reis provinciais para com o Ard Righ, bem como sobre suas obrigações mútuas. Cada rei provincial mantinha também seu círculo de Brehons, mas de nível inferior aos do Ard Righ, para decidir todos os assuntos dentro de seus respectivos territórios. Finalmente, cada chefe tinha um ou mais Brehons anexados ao seu lar, para decidir as contendas de sua tribo.” O próprio códice jurídico irlandês da época - o Críth Gablach - declara que o juiz era o mais importante membro da comitiva do rei.
Gerriets também nota um detalhe importante no que diz respeito da supremacia dos reis e nobres e, portanto, do Estado, sobre os juízes: “Se o rei julgasse com seu próprio conhecimento, ou com o conselho de um brehom ou brithem, ele permanecia responsável pela provisão da justiça.”
A ligação do rei com todo o processo de julgamento era bastante clara. Ele estava tão ligado que, segundo Laurence Ginnell em The Brehon Laws: A Legal Handbook, “se por alguma razão o distrito não tinha um brehon, ou o brehon estava incapacitado, era devido ao rei agir como juiz em casos demandando soluções imediatas.” Também o rei era considerado uma testemunha superior em todas as cortes de Justiça.
Portanto, obviamente o rei julgava. Os brehons estavam, em geral, ligados aos reis e os nobres. Os reis costumavam aparecer quando os nobres não conseguiam resolver uma contenda local por si próprios, ou quando o caso era mais sério, como o de um assassinato. Com tudo isso, conclui Patrick Joyce: “Todos os três [reis, nobres e bo-aires] tinham alguma parte no governo do país e na administração da lei, como reis, tanists, nobres, chefes militares, magistrados e pessoas em autoridade de outra forma; e eles comumente vestiam um flesc ou bracelete no braço como marca de dignidade.”
Outro segmento do processo que sofria interferência notória do Estado Irlandês era, além do julgamento, a execução das sentenças.
A justiça na Irlanda Medieval funcionava por um sistema de multas e recompensas. Na massiva maioria dos casos, crimes eram pagos com bens móveis (geralmente gado ou adornos valiosos), e não com prisão ou morte.
A fase de execução era regulada pela law of distress, ou seja, confiscos e cercamentos. Cada cidadão, depois de vencer o outro em uma corte de justiça, tinha o direito de ir em sua residência e tomar seus bens de acordo com o julgamento determinado na corte. Ou então, se um cidadão se recusasse a ir a uma corte de justiça com um acusador, este poderia ir até sua casa, ameaçar ou, se necessário, tomar seus bens como garantia ou mesmo pagamento por sua não participação no julgamento.
Uma lei de “distress” única e muito tradicional fora decretada para todo o território irlandês em uma assembleia nacional, chamada de Hill de Uisneach. Tal codificação nacional da lei de distress se tornou necessária principalmente por causa das arbitrariedades que frequentemente ocorriam na execução da lei, anteriormente sem uma codificação geral uniforme.
Uma das razões pelas quais certos autores negaram a aplicação da lei pelo Estado na Irlanda Medieval é a ausência da citação do rei na lei de distress. Porém, o rei tinha aqui, novamente, um papel subsidiário, como uma espécie de executor ou autoridade última, para resolver casos mais importantes. Os chefes locais tinham um papel mais estrito na aplicação da justiça, mas nenhum deles deixava de ter seu papel. Na primeira etapa do processo, o cidadão deveria comparecer na casa do acusado com um funcionário público que era encarregado de supervisionar se o distress foi feito corretamente de acordo com a lei minuciosa que o regulava. Aqui, a presença do Estado ocorre como ente fiscalizador e garantidor da aplicação dos devidos trâmites legais prescritos.
Então um funcionário público, embora não necessariamente um nobre, era encarregado de supervisionar o processo de aplicação da lei. Patrick Joyce cita diretamente os documentos da Brehon Law dizendo: “Muita formalidade era observada em todo o procedimento de distress; e quem for fazê-lo deve ter o acompanhamento de um agente da lei e de sete testemunhas.”
Em caso, porém, de as primeiras tentativas de realizar o distress não darem certo, um nobre, chefe ou autoridade local, com sua força superior, poderia auxiliar o acusador a realizar o processo. É importante colocar a citação inteira de M. J. Gorman sobre a questão, de seu artigo “The Ancient Brehon Laws of Ireland“, para entendermos corretamente o papel da autoridade pública no distress:
“O requerente dava aviso ao ocupante de que se destina a entrar na terra em execução de seu pedido. Esta comunicação era repetida ao fim de dez dias, e se nenhuma resposta satisfatória fosse dada, o acusador, acompanhado por suas testemunhas e levando dois cavalos, cruzava o limite e permanecia na fronteira das instalações contestadas por um dia e uma noite. Ele então saía, e no quinto e décimo dia depois, ele repetia o aviso prévio. Se a satisfação ainda fosse negada, ele novamente entrava, com quatro cavalos e duas testemunhas, e avançava um terço do caminho rumo ao centro das terras. Se o ocupante ainda estivesse obstinado, o reclamante retirava-se novamente e, por mais dois dias, notificava sua intenção de fazer sua inscrição final. Ele então entrava novamente, com oito cavalos e quatro testemunhas, algumas das quais deviam ter a categoria de chefes ou nobres [!], e desta vez ele avançava para o centro da terra e tomava posse, a menos que o ocupante se submetesse à arbitragem. Os prazos exigidos para os avisos e entradas tinham a intenção de dar ao ocupante tempo para considerar se consentiria na arbitragem, e a entrada final era feita de tal forma que ele fosse forçado a fazer isso ou a abandonar a posse.”
Portanto, era obrigatória a participação, no distress, de testemunhas (ao menos um “agente da lei”, segundo a Brehon Law). Além disso, se necessário, participava do distress também um nobre local, justamente se o acusado se relutasse em conceder seu bem em caução. Assim, a autoridade política entra aqui para um ultimato, ou “entrada final”, para impor a execução da lei ao acusado.
Até mesmo Joseph Peden, principal influenciador de Rothbard sobre a Irlanda Medieval, admite o ponto referido, citando em Property Rights in Celtic Irish Law que, “quando os reis aparecem na execução da justiça, eles o fazem através do sistema de fiança que foi utilizado para garantir a execução dos contratos e as decisões dos tribunais de Brehon.”
Esse papel das autoridades políticas foi enfatizado por Noelle Giggins em seu artigo “The Lost Legal System: Pre-Common Law Ireland and the Brehon Law“. O local para onde deveriam ser levados os bens confiscados no distress era um local de armazenamento público, existindo, em geral, sete deles em cada tuath. Esse local de armazenamento “era ligado a uma residência de um chefe“, como diz Patrick Joyce. Quando o membro que realizava o distress era rei ou nobre, os bens ficavam em sua própria casa.
Existiam também privilégios de nobres, reis e autoridades públicas na justiça que indicam seu papel intimamente ligado a essa atividade. Quando um acusador era pobre, ele tinha o direito de jejuar na frente da casa do acusado e, se isso ocorresse, o acusador tinha o dever de comparecer junto a ele em uma corte de justiça. Quanto a reis e nobres, porém, essa não era uma opção: a única forma de levá-los a uma corte de justiça era jejuar em frente à sua casa: o distress comum não poderia ser usado contra eles.
Outro aspecto é a pena de morte. Ela costumava não ser realizada, embora os reis “se consideravam no direito de matar algumas pessoas por certos crimes.” E ainda, no próprio código de lei, a única validação explícita da pena de morte era para quem perturbasse uma assembléia pública, como as Feis de Tara. “É dito que, na época de São Patrick, nem o ouro nem a prata seriam aceitos para quem acendesse um fogo perto do festival do Tara, que ele deveria receber pena de morte; e a pena de morte era aplicada a qualquer um que, em uma reunião justa, matava o outro ou começava uma briga séria.”
Inclusive, uma dessas várias assembleias que existiam na antiga Irlanda, chamada Aenach, servia como uma espécie de corte superior do direito. Diz Laurence Ginnell: “Das assembleias locais, a Aenach, uma assembleia do distrito, provavelmente era a mais importante. Entre outras coisas, a Aenach era um corte superior de direito para julgar casos apelados ou de dificuldade especial.”
A respeito da competência para julgar e da anuência das partes no processo, isso ocorria mais frequentemente em questões contratuais de acordos pré-estabelecidos entre as partes (como compra, troca, doação, comodato, etc.) e não em contratos involuntários ou questões penais, quando uma das partes acionava o brehon e a outra parte era compelida a submeter-se a ele. Em casos de discordância quanto à eleição das partes do brehon para julgar a lide, os nobres/flaiths ou septos determinavam o foro de julgamento adequado, impondo a decisão aos litigantes.
Rothbard tenta intuir que os contratos de sureties desembocavam - tal como na Islândia, através das decisões dos chieftans - num sistema opressor de ostracismo que garantia que a competência jurisdicional atuasse sem transgredir a Ética, mas a interpretação está gravemente equivocada. O sistema de ostracismo era utilizado como um mecanismo dos nobres e reis para coagir os indivíduos a aderir e acatar os julgamentos de menor potencial lesivo sem resistências, já que a população era autorizada a molestar a vida e o patrimônio do infrator e de sua família sem sofrer represálias legais, num contexto em que o exército e o monopólio do uso da força era concentrado nos nobres e reis locais. Ou seja, em nada diferente das penas a que os demais reis medievais por toda a Europa submetiam os condenados, especialmente os declarados hereges.
De modo que o sistema político irlandês era subsidiário quando o tema era poder concentrado. O poder não se concentrava predominantemente nos reis, mas sim nos nobres e nas próprias comunidades locais sobre as quais eles tinham autoridade. Assim, algum documento poderia não citar o rei diretamente quanto à justiça, mas essa função ainda ficaria ordinariamente encarregada por um nobre local ou flaith. Assim, embora subsidiária, a antiga Irlanda nunca deixou de ter a participação de autoridades e oficiais públicos na justiça, seja em julgamento ou em execução, e em cada localidade essas autoridades serviam como agente último de justiça e pacificação; e se as autoridades locais não conseguissem realizar essa função, ela era passada para uma autoridade superior. A própria Marrilyn Gerriets aponta a subsidiariedade como razão dessa confusão sobre o papel do Estado e das autoridades políticas em questões jurídicas no sistema.
De modo que as pessoas que nasciam no território estavam sujeitas, mesmo sem seu consentimento, à inúmeras obrigações da comunidade na qual vivia, podendo migrar para outros tuaths-amigos que possuíam outras obrigações comunitárias locais, ficando a cargo do indivíduo decidir a qual deles se submeteria (e não se submeteria ou não). Nada radicalmente distinto da conexão inter-estatal que temos no mundo moderno.
Eoin Macneill em Phases of Irish History é taxativo: “O antigo Livro dos Direitos divide a Irlanda em pouco mais de cem pequenos estados. Estes são organizados em sete grupos, com um super-rei à frente de cada grupo. A questão principal do livro é definir certas relações entre o rei supremo de cada grupo e os reis menores sob ele. Tudo isso é dito em verso. O plano do livro é colocar dois poemas para cada um dos reinos superiores ou grupos de estados. Um dos dois poemas relaciona os tributos pagáveis pelos pequenos estados ao supremo rei à frente do grupo. O outro poema relaciona os presentes costumeiros dados pelo rei superior aos reis locais.”
No quesito comparativo, o sistema Irlandês estava bem próximo do Islandês, estruturada em sistemas de vários goðorðs sob comando dos caciques goði, que se impunham sobre aquela pequena comunidade. Embora os indivíduos fossem livres pra transitar entre os goðorðs, não havia um sistema de apropriação original que respaldasse qualquer similaridade com o universo libertário, nem respeito máximo à propriedade privada.
Lembrando que esses feudos com liberdade atípica no mundo medieval possuíam tribunais superiores, os Goðars e seu sistema executivo, que com o passar do tempo foi concentrando mais e mais poder em âmbito "nacional", mitigando e espoliando esse sistema descentralizado até que a formação do Estado Nacional absolutista irlandês se consumou, o mesmo processo que a Irlanda observou. Tanto em âmbito interno, quanto externo. Já que essa descentralidade dificulta o processo de imperatividade e preponderância contra inimigos no âmbito geopolítico internacional.
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